28 de fevereiro de 2019

O telejornal: o mesmo sempre, sempre o mesmo



Gozar dos desprazeres alheios
cuspir e xingar, na voz o ódio,
repugnar o miserável, lastimar
até nos intervalos comerciais
e encher o mundo de medo
medo hipócrita: lançam aos povos
o pavor do convívio comum.

Pois tudo é tão perigoso. Tome
cuidado; não confie em ninguém.
O açoite do sujeito social
eis aqui a função do telejornal.

Fronteiras intransponíveis se erguem
entre nossas retinas e bocas
cisco no olho alheio é cócegas.

Eis a reinvenção dos contos:
enaltecer a tragédia cotidiana
lembrar ao humano sua finitude
enquanto ser miserável
quanto mais miserável for o dinheiro
no bolso.
A morte está para os pobres e parentes
como o café está para o vício. 

25 de fevereiro de 2019

Ainda que o vigário volte - parte I



Adio meus pensamentos de maneira constante
Nuvens escurecidas atravessam quietas
Devoram vaga e lentamente. Um silêncio gritante.
Fecha as portas que antes estavam abertas.

É tudo cinza. Mas nunca me foi tão claro.
Um pouco de nebulosidade faz ver melhor.
Relembro os segundos, a intensidade de cor
Sentir-se só mais um. É sentir-se raro.

Pouquíssimas afirmações tão conclusivas
Deixando que a dúvida consuma o íntimo
Ao seu próprio passo, ao seu próprio ritmo.

Sentir-se como um qualquer, como qualquer um
Como um andarilho carrega sua cachaça
Como um pirata com seu papagaio e garrafa de rum
Uma formiga a habitar o que sempre passa.

É tudo cinza, já lhes falei isso? Certamente.
É tudo tão cinza aos olhos de qualquer gente
Ainda que alegre - alegria passa- é cinza
Ainda que o vigário sempre volte para rezar a missa.


19 de fevereiro de 2019

Relações abstratas e pós-modernas entre deus e um funcionário do balcão de informações




No balcão de informações
um sujeito se embriaga de café
sua função é estar ali, parado,
alheio ao que não seja informar,
dez horas seguidas de uma bunda quadrada
mas cheia de informações.

Sabe de tudo, e de todos,
tal como uma divindade que engorda
a cada virada de seu globo ocular.

Talvez o que chamam de "deus"
seja isso: uma espécie de porteiro sem função,
deslocado no espaço-tempo
pronto a nos servir e manter-nos ali
no balcão de informações

a diferença - sempre há - é que o rapaz do balcão citado
oferece café (o rapaz é meu tio), e é um bom ouvinte.
Agora, a tal da entidade - aprisionada no seu canto - por mais tempo
que quem espera a tão sonhada aposentadoria,
deixou-se levar pelo tédio, pela agonia da solidão,
e, de maneira justificada, nada nos informa:
nem aos fiéis nem aos descrentes nem aos irônicos difamadores de vosso catolicismo ou de quaisquer dessas religiões que pregam a paz e que, um dia, pregaram o filho do tal salvador.

17 de fevereiro de 2019

Food does not come in there: Venezuela



Quanta humanidade
nesses países tão lindos
paraísos de cor neve, branco branco banco
até a casa é branca

embargos
sin embargo
sim, senhor!

Um litro de petróleo
(dou-lhe até dois)
por uma migalha de pão
é que os estadounidenses querem a paz
como quis no Iraque
como quis na Guatemala
como quis aqui, no Amazonas,
como quis em Honduras
como quis no Canadá
como quis na Líbia
como quis no Afeganistão, tão cruel,
como quis na União Soviética
como quis 1967, Sudão
ó glorioso país: mãos santas banham o proletariado
defenderei-te até a morte
de outras mil crianças em um colégio qualquer

Os terroristas são os outros!

Mas,
lá vem o comunista escrever
que essas guerras não foram somente para ajudar os tristes países
(agora vai dizer que na Venezuela o interesse é por petróleo?
tolo, o comuna, não sabe que os embargos econômicos foram somente para proteger os cidadãos,
as criancinhas estão mais felizes com esmola - eis ali um MC LancheFeliz, e nem é rapper).

uma lágrima escorre diante a ajuda humanitária
pois se querem enviar comida, a coisa mais lógica a se fazer
é mandar comboios
não remover embargos (é assim que se pensa como um humanista?)

Oh, perdão, a poesia começa aqui:

Venezuela
el
país
con
las
mayores
reservas
petroleras
probadas
del
mundo

Um clique na frase



11 de fevereiro de 2019

Rola-bosta - Crômica dialogada I


O cronista a dialogar com seu camarada, um velho decrépito. Em uma cafeteria qualquer.




- "...então, como estava falando para o Sr., tenho rido de tudo em meu dia. Do pé na bosta tenho dado gargalhada. Meu pé úmido aduba minha risada. As relações sociais que comumente geram uma nebulosidade no ar - deixando o interior da cor da capital paulistana - me agradam. Algo de sádico tem me afetado. Em verdade, algo sadomasoquista (há dor em qualquer risada)".

- "E o que de tão cômico lhe ocorreu?"

- "Pois nada. Nada tem ocorrido. Me sinto um rola-bosta. Aquele besouro. A troco de nada modifico a matéria: o que parece, aos outros, caótico, vejo ali grande valia, transformo o inferno em paraíso".

- "Conte-me: como faço para realizar o mesmo? A tempos procuro viver feliz. Conte-me!".

- "Quer mesmo saber? Deixe que tudo se foda. Deixe o circo pegar fogo (e leve mais gasolina). E, então, no ápice da loucura mundana, sorria. Enquanto a água quente escorre no rosto alheio, apenas sorria. Ria do erro crasso. Ria. Do acerto previsível. Ria do esforçado cotidiano que se engoma todo para trabalhar. Ria do playboy, da burguesia, dos que flertam com a morte. E só".

- "Nada mais?"

- "Depois sente em sua melhor poltrona. Pegue lápis e papel. Ou se ajuste próximo da máquina de datilografar. Na ausência desses, se debruce sobre seu velho computador. E escreva, escreva, escreva. Se preciso, deixe de dormir; mas escreva".

- "E que há nisso de felicidade?".

- " Felicidade? Não sei. Apenas gargalho e dou-me a rir - as vezes de maneira particular, sem que saibam. Escrever é somente outra forma de rir da desgraça cotidiana. Não me venha com esse papo de ser feliz".

 

9 de fevereiro de 2019

punição religiosa



deixe-se duvidar
ponhas os pés no freezer
a cabeça no fogão
deixe tudo um caos só

deixe-se duvidar
tem andado tão feliz, não?
desacredite alguns minutos
não irá fazer mal algum

deixe-se duvidar
não vá ao trabalho na segunda
volte terça
sorridente, e faça com que saibam

deixe-se que duvidem

sim,
você visível
no dia seguinte
e sorridente
bem sorridente

6 de fevereiro de 2019

Nem calçada me resta



Não, não sou dono de nada
propriedade é palavra habitada
por estranhos

nem calçada me resta
os carros tomaram para si
o local dos pés

o corpo
ainda não, mas o tempo
é que manda, apenas
mantenho-o longe de perigos

o assento no ônibus
nunca vi, é também de alheios,
assim como o carrinho de supermercado.

Nem calçada me resta
somente os quilômetros
e na sola do tênis deve ter
um pouquinho de paciência

 

5 de fevereiro de 2019

Voltas e voltas, aqui não tem metrô



Todo cansado
com esse Sol
tenho estado
calor escaldante

minha cidade
Inferno de Dante
racha os pés
ônibus
sem ar
sem espaço
sem tempo pra clichês

ônibus cheio
nosso cansaço
que se reinicia
partiremos
ao meio?