30 de junho de 2019

Relato nu



no prédio da frente, uma sombra,
um contorno que lembra um rosto
não sei se humano ou se são meus olhos
que no concreto notam tons vívidos
(provavelmente não é isso, não)

o céu, é de tom único. Chama pouca atenção;
a Francisco Junqueira, avenida do caos, ferve
e são quase oito horas da noite. Ao longe, milhares
de pontos que vistos de cima, parecem dançar.
A dança de 1752, branco, amarelo, pequenos astros
que iluminam mas não fazem ver. Cada um com seu Sol,
nenhuma novidade nisso.

A senhora da torre da frente, continua ali
mirando sua novelinha, costurando o tempo,
tecendo solidão. Novela não, hoje é domingo,
deve estar lambendo as botas da Catedral,
com algum terço (de vida?).

Estou nu. Despido de razão, despido
de um projeto para o amanhã. Despido
da boa garrafa de cerveja a absolver o pensar.
Estou em nudez.


E não vejo motivos para vestir.

27 de junho de 2019

Hai soltos kais





o tempo voa
quando chove
e estou de boa
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noite brilhante
faz do barro
puro diamante
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grilos e gafanhotos
sonhos poluem
ruas e garotos
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cortina fechando
o céu e a vista
isolando corpos

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filmes estadounidense
ensinam ao mundo
vazios de estética

23 de junho de 2019

Camões



Aquela praça tinha alma
feita de risos enaltecidos
atrasos memoráveis e escândalos.

Aquela praça era a calma
dos que foram esquecidos
dos andarilhos, e até dos vândalos.

Aquela praça tinha seu jeito
cheia de nós, de entrelaços
de decepções que nunca esqueço.

Aquela praça era meu leito
me era por inteiro e por pedaços,
de angústia se reveste o apreço.

Aquela praça era romance e dor
um desastre completo, na verdade.

Aquela praça era apenas calor
e no seu centro, o fogo ainda arde?!

22 de junho de 2019

Hodie mihi, cras tibi



Olhava o Sol, e pensava no que faria,
uma               \ilha/                 presa no concreto e no cimento,
lamento em dó maior, tempo de sobra,
sobra é o que era, o que sentia ser;

oh, cidadão. Me dê uma moeda
me dê de comer, me dê seu olhar
sua mão distante, parece viva,
dez centavos não lhe fará falta irmão.

E costuma chover, costuma ter ratos,
rosas não vi, ele me disse, rosas não vi.
Olhava a noite, até a lua sabe se esconder,
a noite é dos ratos, ele me disse, ratos de farda,
roedores, que pelas beiradas comem a paz.

"Eu só estava deitado no banco, Senhor".
E cidadão tem esse direito, ele me disse, tem?
Eu calei. Calei. Não ia falar. Não ia não.
Eu falaria o quê? Dei meu silêncio.

Olhava o Sol, e não parecia importar a hora
o dia o ano a vírgula o ponto era sempre de interrogação
semáforo é indústria dos não alienados.

Trabalhador é só mais um nome bobo, desses
que se inventa para separar pessoas e justificar
o que costumava silenciar. Não há verso que resolva.
Poesia é acordar no colchão.
Poesia é - as vezes - ter uma lata de cerveja e o que comer.

Mas poesia não alimenta, senhor.
Não mesmo.

21 de junho de 2019

Pedra. Uma pedra.



O que sente a pedra
quando chutada?
viaja longo caminho
e não sente nada?

o atrito que causa
o calor que dali emana
a pedra não chora
quando começa a semana?

a pedra risca o chão
o asfalto suicida
quando silencia
é chutada de novo

e de novo chutada

e aquele que chuta
também não sente nada?

A pedra viaja
o tempo todo
carro, pedestre
cachorro, carroça

até que, de tanto desgaste,
suma
e não faça diferença alguma

(há outras pedras ali) 

19 de junho de 2019

Revestido de ironia, evidente




Arrume um mantra
quando não souber o que dizer
repita o mantra
repita o mantra
repita, de novo, se preciso for.

Qual verso merece tamanho apreço?
Um bordão ensurdecedor? Uma
palavra arrebatadora? Estilo pastor?
Estilo pedagogo? Estilo terapêutico?

Não.
O mantra deve ser épico
e conservar toda sua insensatez
sem que lhe dê calafrios tê-la.

O mantra deve ser breve, não
um discurso político e demagógico.
Deve voar, deve parecer sóbrio,
deve silenciar. E não deixar zen.
O mantra deve fazer sangrar o ouvinte.
Incomodar! Morder! Deixar engasgar!
Mas não deve ser dito com essa intenção.

Apenas, arrume um mantra.

17 de junho de 2019

Pequena nota



Feche os olhos.
A escuridão incomoda?
Como é se ver só
Quando todos festejam?

Vai, segue a onda,
Pegue um gole da garrafa,
Se embriague daquilo
Que costuma repudiar

Dance, dance,
fumaça na cara
fumaça no pulmão
vai te consumir
de uma forma ou outra
vai te consumir

por fora
ou
por dentro





O escritor é falso



Não há muito o que escrever
e pouco já foi dito
escrever para qual fim?

Mentiroso o poeta
que diz que sua escrita
pode mudar algo.

Que muda apenas seu narcisismo.
Que muda apenas seu próprio mundinho.

E o prêmio de literatura vai para aquele
que nada fez. Pois para ser escritor,
não se pode ser nada além de mãos,
e unhas, e canetas, e dedos, e máquina de datilografia,
e, sendo mais moderno, nada além do espaço em branco
na tela do computador.

É o que todo escritor é.
O espaço em branco.
O súdito que finge ser rei
só por usar risquinhos.



Mas seguimos escrevendo.

5 de junho de 2019

Semelhante ao que nunca foi




porquanto o tempo passe
vivo morre morto renasce
semelhante ao que não era

poeira e mais poeira
ao que se chame vida
poema escrito sem eira
se ache ali, na saída

tome forma verso
saia de si e se veja
não fique ali, imerso
só vive o que peleja

porquanto o tempo, assim, passe
de mudança segue indo
verso encerre agora! Ou quase,
se não agora, eu te findo!

1 de junho de 2019

Escutando rubatosis é que senti



conivente comigo mesmo
ficando com uma única direção
perco o horizonte do esmo
por me encontrar sempre assim

um misto de amarelo pálido
com magreza que é só osso
e as vezes não é só osso
e fica querendo isso só ser

por conivência comigo mesmo
e nunca foi diferente
não é de hoje, nem de ontem, amanhã,
coisa esquisita, viu?
é cíclico e cínico;

pareço gostar da ambiguidade
da exatidão da incerteza
do caos que me causo: paixão
por variabilidade estancada na cara;

pra variar?
pra nada.