29 de março de 2019

Sem religião e sem crença




sem muita religiosidade
na escrita que teço
a passos lentos e de amizade
com o tempo

ler por desespero
como quase que tudo
é solidão

escrever, assim
só o necessário
falar menos ainda

verso que eu inicie
que ali
pensado, finda

23 de março de 2019

A pele e o vazio: apenas enfeite



Toda essa mesquinharia, um eminente nada profetizado a muitas e muitas décadas,
o efeito da estética sobre o meio da escrita - e não somente - pois que tudo é desprezível se não for como se supôs,
é preciso estar ordenado ao Zeitgeist - vivo sempre do passado,
e deixar-se despreocupado: corpo flutuante em meio ao que ocorre
enquanto ocorre, anular-se por completo, sem desejo, sem sentir-se
é preciso alienar-se,
pensar enaltece a morte; "ser pensante". Uma vida, um papel.
Amanhã muda o vazio. E não muda, também.

As sensações veladas: o pânico contido na pele, como nos consome!
(Eu deveria dizer somente por mim, deveria dizer "como me consome!",
os outros que descrevam seus fantasmas: mas sou a eles, também).
Levantar e o Sol, importa? Alguns olhos fitam sem a menor expressão
e choram, choram, choram. O café sem açúcar é para ter algo mais amargo no paladar? Perguntas retóricas.
Açúcar é alienar-se dos sabores. Sal, também. Temperos, no geral.
A vida é crua, não é frita, não é assada, não é temperada, é crua!

Crua! E é preciso ter um apetite extremo para não enlouquecer com o tempo,
é preciso ter uma dor aguda a ferir o estômago e se acostumar com ela,
ser Odin e abandonar os vieses de Huginn e Muninn - se despir dos corvos diários, a enfeitar os movimentos doentios.

Discutimos e sabemos - e sabemos que não queremos saber - que nada disso importa,
São apenas palavras evasivas a preencher a forma. São apenas formas a preencher palavras evasivas. São apenas problemas inventados para diluir
os medos, os perigos e os sentidos.
Apenas temperos. Expressões que nos mantêm vivos e enlouquecidamente normais.


21 de março de 2019

Entre isso e aquilo



entre a fumaça do café e a
fumaça do incenso
se encontra metade
daquilo que (não) penso

19 de março de 2019

Baú e pó




sentimentos
lamentos em tom mínimo de gaita
saudade baita
bata; de vez em quando
de vez que eu ando
sem rumo algum
esperando as estrelas virarem pó
nos lamentos em sinfonia de um homem, só

13 de março de 2019

Sem tempo para as manchetes



Urubus, espreitando as minúcias do cotidiano
ávidos pela queda de um sorvete infantil
pois que tudo é midiático. O jornalista, especializado
em carniceria e novidades rotineiras, um azedume ambulante,
olhos, bem mais que dois, a fitar a velocidade do momento,
a lágrima que cai, a morte que ali pousa, o rico que come o novo lanche
de um restaurante até ontem meia boca,
os jornalistas a inventar as novas e novas notícias,
sem que se descreva as causas: pairam e param no que chamam de "fato",
uma visão distorcida de qualquer coisa que se mova
garimpada como verdade, se bem aceita. Outra notícia para fazer aceitar.

Urubus.
O jogo de basquete nem acaba
caem aos ombros dos jogadores
"justifiquem sua derrota! demonstre seu descontentamento, fale, fale, fale!"
a morte tampouco teve tempo de pensar
caem aos ombros dos familiares
"a morte veio lhe visitar. O que acha disso?"

E assim segue a indústria do faz de conta que
sem dar a mínima para as causas e consequências de sua própria existência,
recria narrações, se reinventa com mais do que ontem, criando assim
o nosso amanhã. "Nosso".

12 de março de 2019

E ser ávido pelo viver



...

e ser ávido pelo viver, por acaso, não seria masoquismo suficiente? A labuta diária, alienando a carcaça do meu corpo, não basta? É preciso sufocar. É preciso a agonia da indiscrição que está sempre na cara, no nariz. É preciso sufocar o sufoco, até. Fingir demência em relação ao estrago dos minutos.

E ser ávido pelo viver. Ser a ti mesmo, impessoal. Quem é este? Nem a mim me sei. É preciso se assujeitar enquanto oculto aos próprios fatos. Não descreva, não analise as variáveis de seu contexto, deixe fluir, deixe ignorar-se. E ser ávido pelo viver.

É.



Até onde a ironia nos leva m esmo?

11 de março de 2019

E hoje, e hoje, e hoje, e...



Entre as partes suprimidas de momentos
singulares universos se dispersam
criam-se nadas, fantasias, dores, lamentos
e o que mais couber no vulgar esquecido
pois ali há muito, muito mesmo, não antes
que as nuvens a encobrir toda poeira possível.

Certo desconforto. Há, sem dúvida. Nenhuma é
outras não são, um é um, em qualquer lugar.
A artimanha velada da poesia enaltecida
serve como forma de passar a limpo num ambiente fictício
(qualquer zelo pelo hoje aqui some)
de contornos aversivos e aprazíveis.

Escreve a mão que se ausenta da palavra
uso distorcido que exerce - oh, sociedade!
A cada amanhã, um ontem que morre solitário
vagando cego pela chance de ser ele próprio
um amanhã também. Ainda que entre as partes suprimidas
de momentos singulares universos se dispersam
e, assim caminha o hoje, o hoje, e o hoje também. 

4 de março de 2019

Pelas lentes dos parentes



...

Lamber o sal da ferida
fazer com ele, churrasco,
terminar a bebida
continuar sendo um asco
em dia de festa
ser tudo aquilo que repudia
tudo aquilo
que não presta
aos olhos morais

dias normais.