30 de abril de 2020

Ingenuidade ou persistência?





Ao teu redor
o mundo que tu mesmo construiu
flores, lírios e ervas daninhas
plantas secas e mortas por insolação
vida há onde não bate o coração?

Ao teu redor
os verbos de praxe
a tagarelice tosca do cotidiano
frases e requintes de crueldade
aquilo que de outros
em ti encaixe

Ao teu redor
o que tem tido?
lamúria e grito
medo inibido?
minutos de calma
séculos de trauma
nada do que digo?

Nada de culpa ou julgamento
mas repare bem se
ao teu redor
houver somente dor e lamento
 

27 de abril de 2020

Antologia poética


o tempo escreve
antologias inúteis
prateleiras de pó e ácaros
intocáveis baratas donas de bibliotecas

tenho onze
antologias poéticas
nas minhas prateleiras
e elas nunca me trouxeram
uma dose de pinga, uma xícara de café ou um pão

eu mesmo
me conformo
de nem mesmo ter
uma antologia poética
de jamais ter ânimo para compilar
ordenar, descartar, repor, meus escritos
para acabar ali, na sua prateleira, intangível, decorativo

me recuso
a deixar um antologia
para que vocês manuseiem como quiserem
procurando sílabas que confirmem vossas verdades
como um horóscopo, uma cartomante acessível, uma puta

antologias
são obras fadadas
ao sucesso do pós-morte
e é sempre melhor que assim seja,
em vida o escritor é puro sofrimento
alegria em demasia seca a garganta dos que bem escrevem
dos que bem sofrem para que outras almas possam lê-los
e assim possam saciar a angústia, como se a antologia fosse um confessionário
sem divindade, sem deuses, sem representantes, sem mártires.

25 de abril de 2020

Nota de rodapé (2)


E não seria
estar certo sempre
um indício
de seus constantes
erros?

Idoso, aproximadamente 68 anos, cabelo quase branco e tomando subzero


Mão no cigarro
mão na lata de cerveja
põe a máscara
tira a máscara
mão na lata de cerveja
camarada passou, mão,
mão na máscara
põe a máscara
pega moeda no chão
esfrega o rosto
tira a máscara
outra tragada
e outra e outra
goles eternos
volta no bar
compra outra lata
mão no dinheiro
no saco, na lata
na sacola, no bolso
põe a máscara
abre o latão
de novo, tira a máscara
termina a lata
um e dois cigarros
agora põe a máscara
pega o cartão do ônibus
deixa cair o cartão
pega o cartão do chão
senta pra esperar o busão
oito reposições de máscara
cuspida no cimento
três mexidas no olho
dois espirros
o ônibus chega
entra no ônibus de máscara

cidadão do ano
cumprindo a lei municipal
 

24 de abril de 2020

Solzin


Ao vivo e em cores
o sol do meio dia
derretendo amores
e o que ali havia

Agora o sol domina
nem formiga na rua
nem aqui nem na tua
nem na sombra da esquina

Secando a roupa
que está na varanda
hoje não tem sopa
é o sol quem manda

Sol até na madrugada
a Lua ri, se vinga,
pois nunca foi amada.
 

22 de abril de 2020

Banquete para sua profana imagem


Você sempre esteve nas minhas manhãs, tardes, noites e madrugadas
nos meus pensamentos sombrios, nos rasos, nos profanos e nos mais sacros
vive em minha consumada liberdade e na minha impiedosa determinação;
enquanto lavo a louça, você está ali, me soprando aos ouvidos
enquanto tomo meu banho, enquanto bebo meu café, minhas doses de seu nome,
nas músicas melancólicas você está, sempre esteve, nos pedais, nas notas do baixo,
gritam seu nome em todos os rostos e ventos, o mendigo me disse seu nome
as jabuticabas são seu olhos, o céu escuro teu corpo, as luzes de natal piscam você,
nas angústias que ninguém mais conhece, você secou cada lágrima que você mesmo causou,
nos meus pesadelos e nos meus minuciosos e indescritíveis sonhos de uma sociedade alternativa,
na minha nudez, na vergonha, no ócio não preciso comentar. Você está presente,
no campo vazio da poesia que tem suas curvas, a letra cheia e disparada, que tem suas mãos
seus olhos julgam cada movimento que esse peso realiza, as rimas tem sua autoria,
as hipocrisias que narro são todas suas e não há sujeito que não você,
o som da gaita é sua sonoridade desenhada em sopro e aspiração,
a leitura que faço de Jorge Luis Borges, Neruda, Thoreau, todas, fotografias de seu sorriso
ou mesmo de seus choros, seus ataques histéricos e sua paz inigualável
o conceito de alienação carrega sua graça, os pássaros que vejo voar, as desgraças do cotidiano
tudo e todos são você.
Deus e deuses e deusas, você.

Ao passo que olhando no espelho, escrevo essa poesia e me dou conta de minha compostura narcísica.
Não me apedrejo.
Não me crucifico.
Não me espanta.
Vocês também só veem vocês nos outros.
Mentirosos.

20 de abril de 2020

Pontos de ônibus e de vista


caras tampadas
máscaras
evitando
a proliferação
do discurso
desnecessário

caras tampadas
eterno silêncio
será
conto de fadas?

caras tampadas
ônibus higienizado
nada de lotação

alegrias inválidas
rostos cansados
desço nessa estação

poluição em queda
ruindo o capital
o vírus contribui
adia ao mundo
o inevitável funeral?!

respiram os oceanos
enquanto em pausa
recuam os centros urbanos

questão de pontos
de vista de ônibus

19 de abril de 2020

Pirâmide social


Até
cara ou
coroa seria uma medida
mais ajustada de equidade social
do que a dita democracia pregada pelos ventos




18 de abril de 2020

Gato


  a
        l   
            e
                g
                r    r
                    g    i
                            a

17 de abril de 2020

Maná


capricho
escrever madrugado
acordo
ali, todo pregado

mistério
quando foi escuridão
e então era dia?
perdi parte da vida
escrevendo poesia?
ganhei a outra metade?
ou cheguei todo tarde?

capricho e mistério
nada resolve
a cara de sério
só dura até às nove
• 
capricho
que a p/alma não amansa
a poesia descansa
deitada nessas linhas
escritas por mim
e que nunca foram minhas

puro capricho
o sol veio mais cedo
a noite foi embora
pra criança não ter medo
mas fica a escrita
coisa misteriosa
juro que deitei
sem escrever essa prosa
 

16 de abril de 2020

Poesia escaldada





ali um desaforo
dormia na calçada
alguém levou pra casa
no final da noite passada

e outro desaforo
foi levado embora
o terceiro esperou e esperou
mas também chegou sua hora
 


13 de abril de 2020

Comportamento verbal



digo

nem tão extremo
quanto me dizem
nem tão flexível
quanto me testam

paciência e delicadeza
dependem
dos ventos da natureza

11 de abril de 2020

Covard-17 e João sem Maria


João era amigo do Messias
do Messias da terra de Deus
(o outro Messias)
tinha apelido de trabalhador
e passava creme nas mãos.
O Messias também era
amiguinho de João
mas fingia que não.

Dizia ser diferente
era católico e crente
e comia panetone de seu filho
usufruindo da aposentadoria que,
como qualquer Messias,
recebia desde os 33 anos.

No momento, João e Messias,
antes de caso, vivem de viés.
É que João e Messias estão
metendo as mãos pelos pés.

Mas, fogo que apaga,
logo nossos personagens
amiguinhos novamente
retornam em nova saga.

Atleta e pulôver,
até que o jogo
diga game over.
 

9 de abril de 2020

*


quisera rima completa
            nevoeiro que não passa
chovesse na rua deserta
              e embaixo da minha asa

queira rima completa
           passar longe do bairro
do contrário a gente flerta
          e em ti eu me amarro

que chova lá na secura
               não sob a luz do poste
vá bem na parte escura
                longe de todo holofote

8 de abril de 2020

don't be Put/in off


    Dó                              Livro                    Tudo
   isto                        CCCP                   Num
é                            toy                          Stálin
      whisky                       stoy-co                  boom
amor                        platonóvico

    don't be Put/in off

5 de abril de 2020

3 hai e 1 cais



feito
barata tonta
vivo o que
a vida apronta

• ○ •


e assim segue
até que a vida
a vida me negue



até que vaso
de alimento raso
se seque
 


Até que amanhã
fim da picada
reste semente nada


1 de abril de 2020

Cantiga para criança mimada dormir - parte I



Dorme passarinho
sou teu ninho, teu ninho
ruído vem do mundo
um segundo, um segundo,
fecho a janela começa garoa
eis que teu choro aqui ecoa
dorme dorme dorme
dorme passarinho
sem forma se conforme
a sombra é companhia
tu não está sozinho
tem tua barriga vazia
dorme passarinho
sou teu ninho, teu ninho
o escuro desse cômodo
é pra te confortar
a visão é um incômodo
sente o banho do luar
dorme passarinho
não tem ninho, não tem ninho
deus não te escuta
camuflado na igreja
é tua toda a luta
que milagre tu almeja?
dorme passarinho
que teu sangue é teu vinho
dorme dorme dorme
que a dor já é enorme
dorme passarinho
sou teu ninho, sou teu ninho
imagem e semelhança
meu rosto de caveira
não chora minha criança
tirarei tua dor inteira
dorme passarinho
sou teu ninho, teu ninho
venho com a gadanha
ofereço a morte eterna
trago pão para barganha
meu alimento te hiberna
dorme passarinho
sou teu ninho, teu ninho.