12 de maio de 2020

Crônica da Semana #02: Josias Lorente e os Caminhos da Salvação




A mudança na vida de Josias Lorente foi repentina. Desempregado, descrente e desavisado, foi com pouca clareza conceitual que ele acumulou outros “des” em seu currículo. “Eu jamais terei filhos”, repetia algumas vezes por mês seu mantra que arrasava o coração de sua pobre mãe. Ela tinha o sonho de ser avó, principalmente para ser a primeira de sua geração na família a carregar esse título e esfrega-lo na cara de suas consanguíneas, uma tradição bizarra que ainda se perpetua no popularismo de nossa nação. Aliás, em termos de sobrevivência da espécie, a família de Josias havia dado sua contribuição para o planeta, quiçá até extrapolado a meta do acaso nas gerações anteriores. Aline, a mãe de Josias, desejava ainda, mais do que tudo, que seu filho se convertesse e retornasse para a Igreja, onde foi batizado e instruído, e se reconciliasse com o padre, já que sua última ida ao templo foi para roubar o vinho (ou sangue). Isso sem contar o ocorrido com a Clarissa do Padre que Josias rolou em amassos dentro da sacristia (Clarissa era o nome e a função dela), episódio que o padre não soube mas que, ao meu ver, sendo o corpo objeto de adoração, resguardar-se na sacristia para veneração à carne, não seria pecado, seria reza. Josias sempre dizia que jamais voltaria ao cristianismo romano e explodia versos nada leves quando tocavam no assunto. Porém, toda via carrega um todavia.

Foi em setembro do ano passado que Josias desonrou seu compromisso com sua identidade e com seu caráter tão criticado pelos pais. Ele que, missionário do apocalipse, seria o primeiro a martelar Jesus na cruz – faltando apenas ter um pôster dos soldados romanos em seu quarto - se tornou um dos maiores defensores do evangelho entre os seus familiares, parentes e amigos. Esses últimos formavam um grupo quase unânime de debochadores. Sim, essa é uma categoria religiosa, para os que não conhecem o universo do ateísmo, do agnosticismo, dos meros descrentes e do deísmo fajuto, isso sem citar os filósofos pós-modernos e os construcionistas gerativistas (não falarei dos psicanalistas pois a adoração ao falo é outra tese). Os íntimos colegas de Josias eram debochadores. Essa é, sem sombras de dúvida, o grupo mais excomungado e desprezado pelos fieis, independentemente da fé dos religiosos. O deboche com o sagrado incomoda, suspende os sentidos dos mais fervorosos em seus dogmas. Josias sabia disso. Josias tinha vivido duas décadas como Rei da esbórnia. Era o guia da seita.

Mas, como eu disse, foi em setembro. Josias se tornou membro de uma das incontáveis Igrejas Evangélicas Reformadas no Brasil, de orientação Calvinista, que lutam para continuar existindo nesse ramo de negócios. O leitor me desculpe a ignorância com que escrevo o assunto, mas basicamente isso significa ser membro de uma igreja evangélica que rompeu com outras igrejas evangélicas e se tornou independente. Considerando o surgimento dos crentes e o rompimento com o catolicismo, é como se Josias fosse membro de uma reforma dentro de outra reforma que terminará, certamente, em outra reforma (talvez dessa vez uma reforma no templo, deixando ele revestido de ouro para os fieis que passam fome rezarem dentro dele de maneira mais confortável).

A imaculada mulher de Josias também era participante assídua do templo. De fato, ela era a voz inaudível que soprava aos ouvidos de Josias. Mãe de alguns pirralhos que Josias tomou como seus, Ortega tinha raízes mexicanas e sua adolescência foi um verdadeiro embate moral. Assim como a família de Josias, considerável parcela de seus familiares eram católicos. E todos sabemos que o catolicismo entre os mexicanos apresenta características particulares de adoração intensa a imagens e aos semideuses. Foi como se Ortega abandonasse o panteão para se dedicar exclusivamente a um ser sem rosto, ainda que retratado como um branco pálido e cabeludo nos quadros que ela passou a repudiar sob o argumento de adoração pecaminosa. Josias também era monoteísta mas no início de seu relacionamento com Ortega, dividiu sua crença em três divindades: Deus, Ortega e uma imitação ocidental de Danu, deusa celta da fartura e prosperidade, conhecida em nosso meio pela frase “nada me faltará”.

Não consigo elucidar a cara de assombro que fiz quando um amigo dele me esclareceu as mudanças na vida de Josias. Ao que me relataram, ele acordava às três da madrugada para rezar – e fica a denúncia, atrapalhando o sono do todo poderoso –, ia para as ruas algumas vezes na semana, antes do Sol raiar, para ir de porta em porta divulgar a empresa de seu pastor; Joel e Ortega não mais transavam, pois ainda não eram casados – mas isso logo deixaria de ser uma questão, eles casariam nos próximos meses e assim não transariam por opção -, pagava, para seu magnífico pastor, vinte por cento do que ganhava no mês (suserania e vassalagem) e, pasmem, além de cuidar dos seus novos filhos, tentava incansavelmente, converter seus antigos amigos, os mais debochadores e burlescos habitantes desse sórdido planeta. O relato desse amigo, inclusive, foi dos mais épicos e carregado de riso que já ouvi. Em um dos momentos de diálogo, me disse que Josias afirmou para ele que, caso não mudasse de vida e seguisse rindo do que é sagrado, iria para o inferno. Nada faz um debochador rir mais do que a ladainha sobre o inferno. Parecia que Josias desconhecia suas próprias raízes, seus próprios comportamentos, parte da própria vida.

No entanto, o grande final dessa miserável crônica recai na mãe de Josias. Ele, ao que indica sua logomania paroquial, em breve arrumaria um emprego ao estilo que Diderot coloca no livro “A religiosa”, um emprego onde “o salário não importa: somente segurança, repouso, pão e água”. Também teria filhos próprios e viveria algo em torno de uma década de casamento, até que num belo dia fosse fisgado pelos prazeres carnais e desistisse do sonho da vida eterna. Ou não. Talvez seguiria a transfiguração monástica, abriria sua própria igrejinha no bairro e conseguisse esconder dos olhares humanos os pecados cometidos, prosseguindo com o casamento, demonizando as ações dos outros e ignorando que seu deus fosse onisciente. O leitor já deve ter percebido que, para além das divindades, minha descrença se concentra em negar qualquer possibilidade do puritanismo no ser humano e de suas boas ações.

E com isso esquecemos a mãe de Josias. Mas não por muito tempo. Seguramente vocês lembram que expliquei que ela era desejosa de ter netos e de ver seu filho no caminho da salvação. E se eu dissesse que, atualmente, ela reza a todos os santos e arcanjos para que ele volte para o pecado? E se eu dissesse que, todas as noites, se ajoelha e implora para deus e para o diabo que curem a cegueira espiritual de seu descendente? Vocês duvidariam? Pois que duvidem! Isso é o que tem acontecido. Dona Aline, mãe de Josias, pranteia só de pensar no rumo que ele tem tomado. Jamais chamaria qualquer filho de Josias, procedente ou postiço, de “meu netinho, minha netinha”.

A razão disso? Bem, meus queridos e queridas e queridxs. Usarei uma parábola. O desempregado é visto com bons olhos por uma empresa. Ele está lá, esperando, desejoso de trabalhar, necessitado, na verdade, e a corporação precisa que ele esteja justamente assim para que, num momento de morte, esgotamento ou impostura de um contratado, ela tenha outros para ocupar a função, ganhando até menos e trabalhando até mais. Agora, por acaso o funcionário de outra instituição é visto com bons olhos pela empresa concorrente? Óbvio que não. Ela precisará demonstrar que é ainda melhor, precisará convence-lo de que, sendo ele ótimo, ela é o local certo para ele. Mas aí surgem problemas. O empregador joga sujo, promete mil e uma coisas para o empregado, vende para ele a promessa de uma vida eterna, de lucros e dividendos. E assim se estabelece a impossibilidade de reposição das peças para a outra instituição. Isso acontece em todos os negócios e empreendimento. Seria diferente com as startups e monopólios da fé? Na medida em que os funcionários do show da fé se sentem patrões, tomariam uma resposta diferente de “não” como absurda.

Annuntio vobis gaudium magnum;
Habemus confusione!

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