Nem sei bem, caro leitor, se o que escrevo é o que ocorre; mas escrevo esse emaranhado de cotidiano de uma guria qualquer.
Ela desperta, as cinco da manhã. Tem família - como qualquer outra - talvez uma filha pequena que vai para o colégio, logo cedo, zumbizinha; talvez um marido que apressadamente luta pelo pão do dia seguinte, e não tem tempo nem para tomar o café da manhã do próprio dia. Tem família - como qualquer outra que não se anda tendo hoje em dia; e isso não é algo ruim, devido as circunstâncias do meu escrever.
De toda forma, prossigamos. As cinco, desperta: arruma a mesa, arruma a casa, arruma a roupa de todos, arruma o almoço, arruma as camas, arruma, arruma; são seis horas. Toma o ônibus; o ônus do povo; o bônus é estar cheio.
Chega no seu trabalho, ou por melhor dizer, o trabalho a ela chega. Uma pequena fila, antes mesmo das sete horas, a lhe ofuscar o pensamento. Zumbizinhos. Mas tampouco eles tem culpa de ali estarem; estiveram apressados pela madrugada-manhã, não possuem pais que lhes façam o café (sim, leitor, possuem mãos para fazê-los), apressam-se para sair de casa, e como a burguesia, além de pressa, tem money, não se preocupam em comer em suas residências: tomam o café da manhã nos quinze minutos antecedentes as aulas; afogam-se em salgados, pães e, principalmente, na amargura esplêndida do café. Sim, o Café. O motivo da fila; o motivo do despertar as cinco da guria que estamos comentando; o motivo dos atrasos em sala; o motivo de diálogos fervorosos entre adolescentes e suas besteiras filosóficas; o único item que se pode comprar - o copo, claro - com uma nota de dois reais, antes da manhã chegar.
Ela chega a sua servidão; apronta-se: põe vestimenta, põe sapato específico, põe toca de cabelo; põe seu corpo em hibernação; e ativa o sistema de trabalho.
Aí daqueles que não conhecem o sistema de trabalho. O magnífico sistema de trabalho acoplado ao corpo de todo ser humano que precise escravo ser. Ela o ativa. Seus sentidos somem; os robôs sentem inveja da mecânica dos seus movimentos; e ela se locomove, com os olhos entreabertos, como se nada estivesse acontecendo, como se ela não tivesse que passar as próximas dez horas em pé, servindo ignóbeis alunos e professores de faculdade - além de visitantes curiosos - servindo sua própria cova, se entorpecendo com o cheiro de cafeína e açúcar; além da canela (e o som das abelhas, por consequência), as vezes.
Tudo isso, meu caro leitor, minha cara leitora, minha outra face. Tudo isso, para chegar no início do mês seguinte e receber seus míseros mil reais; o suficiente para comprar 500 copos de café que o local em que trabalha vende.
Ela abre a loja, e as pessoas da fila dizem, como se estivessem em uma Assembleia, como se estivessem numa Doutrina Esquizofrênica, ou como chamam por aí, nas Igrejas. Dizem: "Aleluia".
E pensam vocês que ao ouvir essa exclamação a guria em questão se incomoda? Não. Ela diz "bom dia", ela recebe "bom dia". Ela está com o Sistema de Trabalho ativado. Não tem sensações. Ali não habita um ser humano nas próximas dez horas (ou mais, quem sabe).
Ela termina o expediente na loja, já sem pessoas na fila, e diz, como se estivesse em uma Assembleia, como se estivesse numa
Doutrina Esquizofrênica, ou como chamam por aí, nas Igrejas. Diz:
"Aleluia".
O engraçado é que com certa frequência ela não mais usa o Sistema de Trabalho. Ela é o trabalho. As pessoas a olham, sempre sem qualquer expressão ou humor, e comentam: "olha, é a moça da cafeteria, o que ela faz aqui?". Claro, ela não pode estar ali, ela é o trabalho. Operários não vão ao mercado. Operários não tomam cerveja. Operários não dormem. Operários são seus trabalhos, são suas funções. Mas, interrompendo nossos delírios filosóficos, voltemos a crônica.
Ela desperta, as cinco da manhã. Tem
família - como qualquer outra - talvez uma filha pequena que vai para o
colégio, logo cedo, zumbizinha; talvez um marido que apressadamente luta
pelo pão do dia seguinte, e não tem tempo nem para tomar o café da
manhã do próprio dia. Tem família - como qualquer outra que não se anda
tendo hoje em dia; e isso não é algo ruim, devido as circunstâncias do
meu escrever.
O leitor pode estar se perguntando: oras, mas vais repetir a crônica?
E, ao acaso estou eu repetindo algo? Tomai conhecimento que, da minha parte, não repito nada. Estou descrevendo, minuciosamente, o amanhã da guria em questão. Mas, se não consideram necessário, me calo, me calo.
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